Já comentamos que o foco deste material didático é a abordagem do voo transônico (realizado em velocidades acima do regime subsônico, esse último empregado por aviões de baixa performance), haja vista tratar-se do regime utilizado pelas aeronaves comerciais.
Você sabe que o mundo da aviação experimentou imensos avanços ao longo das últimas décadas, refletindo no aumento da eficiência e da segurança dos voos. Mas, se perceber, em relação à velocidade com que os aviões cruzam os céus, podemos afirmar que, desde a década de 1960, os aviões comerciais a jato não tiveram muitos ganhos em termos de velocidade de voo. Uma aeronave Airbus A320, um Boeing 777 ou um Embraer 190 voam atualmente com velocidades de cruzeiro similares à empregada pelos antigos Boeing 707, por exemplo. O que vemos, entretanto, é a engenharia aeronáutica cada vez mais capaz de produzir aeronaves eficientes, essas capazes de retardar o surgimento das nocivas consequências dos efeitos de compressibilidade do ar, já estudados anteriormente aqui neste livro.
Mas, logicamente, todos gostaríamos de voar por aí em velocidades maiores, até mesmo supersônicas como as do famoso Concorde. Entretanto, voar em regime supersônico requer, além de características aerodinâmicas peculiares do objeto em voo, uma grande quantidade de potência, o que o torna um regime muito pouco econômico. É por isso que, atualmente, não existem mais em produção aviões de uso comercial que operem nesse regime. Então, nos tempos atuais, ainda não foi possível desenvolver aeronaves de linhas aéreas que, voando acima da velocidade do som, sejam capazes de ser comercialmente vantajosas. Ou seja, para que haja um pequeno incremento na velocidade em relação ao voo transônico dos jatos atuais, há um custo de produção e de operação da aeronave que não se faz compensar economicamente.
Nesta Seção abordaremos conceitos básicos sobre o escoamento supersônico, para que você seja capaz de distingui-lo do escoamento transônico (lembre-se de
que no regime transônico coexistem em um aerofólio fluxos de ar com velocidades subsônicas e supersônicas). Recapitulando, por convenção, o regime de voo
supersônico é aquele realizado em velocidades acima de Mach 1,2, até Mach 5.
Já estudamos anteriormente que, em baixas velocidades de voo, o ar experimenta pequenas mudanças de pressão, as quais provocam variações desprezíveis de densidade, simplificando consideravelmente o estudo da aerodinâmica de baixa velocidade. O fluxo é dito incompressível, uma vez que o ar passa por diminutas mudanças de pressão, sem alterações significativas na sua densidade. Contudo, do estudo que fizemos sobre o escoamento em regime transônico – esse já realizado em voos mais velozes (acima de Mach 0,75), verificam-se variações significativas de pressão e na densidade do ar. Assim, o estudo do fluxo de ar em grandes velocidades deve considerar essas mudanças de densidade, o que significa enxergar o ar como sendo compreensível, ou que existem efeitos de compressibilidade.
Você já sabe, de tudo o que estudamos até aqui, que a velocidade do som (que varia com a temperatura ambiente) é muito importante no estudo do escoamento de ar de alta velocidade. Na medida em que uma asa se desloca pelo ar, ocorrem mudanças na velocidade local as quais criam perturbações no fluxo de ar ao redor desse aerofólio, e essas perturbações são transmitidas por meio do ar à velocidade do som, preparando as partículas de ar à frente, antes de sua chegada. Se uma aeronave estiver se deslocando em baixa velocidade, as perturbações serão transmitidas e estendidas em todas as direções. Segundo Saintive (2009), a aceleração e a força necessárias para movimentar tais partículas, e desviá-las de acordo com o perfil da asa, são sempre menores do que nos casos de inexistência desse “aviso”.
Entretanto, se a asa estiver se deslocando com velocidade acima da velocidade do som, o fluxo de ar à sua frente não sofrerá influência do campo de pressão do objeto em movimento, uma vez que as perturbações não podem se propagar mais rápido do que a velocidade do som. Uma onda de compressão se forma no bordo de ataque da asa, por exemplo, e todas as mudanças de velocidade e de pressão acontecem repentinamente.
Assim, o fluxo de ar à frente de uma asa não é influenciado até que as moléculas de ar sejam repentinamente desviadas pela asa. Dos conceitos já abordados, repare na figura abaixo: ela aborda o resultado do deslocamento de uma aeronave em três situações – velocidades inferiores a Mach 1, voando a Mach 1 e acima dessa velocidade.

Na figura anterior, observe no formato da Onda de Proa, para o caso de uma aeronave voando acima da velocidade do som. Ao ultrapassar a barreira do som, as Ondas de Proa deixam de ser normais (perpendiculares) ao deslocamento e tornam-se oblíquas, no formato de um cone – o que é denominado “Cone de Mach”. Segundo relembra Homa, 2010, a abertura desse cone é conhecida como “Ângulo de Mach”, e esse será tão menor quanto maior for a velocidade do avião.
Agora repare na mesma figura, porém, para o caso da aeronave que voa na velocidade do som. Voando nessa velocidade, as ondas de pressão produzidas pelo próprio avião não conseguem se afastar (pois viajam na mesma velocidade, ou seja, a velocidade do som), acumulando-se no nariz. Esse acúmulo de ondas gera o que se conhece por “Onda de Choque”, que nada mais é do que uma onda de pressão perpendicular ao deslocamento do voo (também denominada “Onda de Proa”, pois ocorre na proa do avião). A pressão é elevada em toda a região atrás da onda, “empurrando” o avião para trás. Ao passar pela Onda de Choque, a temperatura, a pressão e a densidade dos filetes de ar são aumentados, reduzindo-se a sua velocidade (Saintive, 2009). A figura abaixo exemplifica o surgimento da Onda de Proa bem como da Onda de Choque oblíqua no bordo de fuga do perfil aerodinâmico, em escoamentos com velocidades superiores às do som.

O efeito da compressibilidade não depende da velocidade do ar, mas do relacionamento entre a velocidade do ar e a velocidade do som. Como já sabemos, esse relacionamento é chamado de número Mach, o qual é definido pela razão entre a velocidade verdadeira do ar e a velocidade do som a uma determinada altitude (recorde que a velocidade do som varia somente com a temperatura do ar).
Os efeitos da compressibilidade do ar não estão limitados às velocidades de voo à velocidade do som ou acima dessa. Uma vez que qualquer avião é construído com forma aerodinâmica, o ar acelera e desacelera ao redor dessas formas e alcança velocidades locais acima da velocidade do próprio voo. Assim, uma aeronave pode experimentar efeitos de compressibilidade em velocidades de voo abaixo da velocidade do som. Dessa forma, já estudamos anteriormente que é possível coexistirem fluxos tanto subsônicos quanto supersônicos na aeronave, simultaneamente, mesmo que essa se encontre voando com velocidade inferior à velocidade do som.
No regime transônico, o fluxo sobre os componentes da aeronave é parcialmente subsônico e parcialmente supersônico. Já nos regimes supersônico e hipersônico existe fluxo supersônico sobre todas as partes da aeronave. Naturalmente, nos voos supersônicos e hipersônicos, algumas partes da camada limite são subsônicas, porém, o fluxo predominante ainda é supersônico.
Quando a velocidade de voo excede a velocidade do som, uma onda de proa aparece repentinamente na frente do bordo de ataque, com a região subsônica atrás da onda, e as Ondas de Choque normais se movem para o bordo de fuga. Se a velocidade de voo aumentar para qualquer valor supersônico, a Onda de Proa se moverá para mais próximo do bordo de ataque, inclinando-se para baixo; e as Ondas de Choque normais do bordo de fuga se tornam ondas de choque oblíquas. Vejamos de forma muito resumida algumas diferenças entre os fluxos subsônico e supersônico de ar:
Em um fluxo subsônico, toda molécula é mais ou menos afetada pelo movimento das outras moléculas, em todo o campo do fluxo. Em velocidades supersônicas,
uma molécula de ar pode influenciar apenas aquela parte do fluxo contido no Cone de Mach, formado atrás daquela molécula.
Ao contrário do fluxo subsônico, um fluxo de ar supersônico acelera ao longo de um tubo de expansão, provocando a rápida queda da densidade do ar, para compensar os efeitos combinados do aumento de velocidade e aumento da área secional.
Também ao contrário do fluxo subsônico, um fluxo de ar supersônico desacelera ao longo de um tubo de contração, causando a rápida queda da densidade do ar, para compensar os efeitos da queda de velocidade.
Saintive (2009) pontua essa característica do regime supersônico, ao falar sobre a diferença de escoamento em um bocal convergente- divergente, quando o fluxo passa da situação de regime subsônico (incompressível) para o regime supersônico (compressível). No regime subsônico, um bocal convergente reduz a pressão e aumenta a velocidade do escoamento, ocorrendo o oposto quando o escoamento é supersônico, como pode ser observado na figura abaixo.

Com fluxo supersônico, todas as mudanças na velocidade, pressão, temperatura, densidade e direção do fluxo acontecem repentinamente e em curta distância. Todas
as ondas de compressão ocorrem abruptamente e são dissipadoras de energia. Já abordamos que as ondas de compressão são familiarmente conhecidas como Ondas de Choque. Já as Ondas de Expansão resultam da transição de fluxos brandos e não são perdas de energia, como as Ondas de Choque. Em um fluxo supersônico, podemos observar a existência de três tipos de ondas: Ondas de Choque Oblíquas (compressão em ângulo inclinado); Ondas de Choque Normais (compressão em ângulo reto); e Ondas de Expansão. A natureza da onda depende do número de Mach, da forma do objeto causador da mudança de fluxo e da direção do fluxo.
Vejamos um pouco mais sobre as características básicas de cada uma dessas ondas.
Você já sabe que as Ondas de Choque Normais são visualizadas nos escoamentos em regimes de voo transônico, mas tais efeitos também podem ser observados em
escoamentos supersônicos, a depender da forma do objeto em movimento (segundo Saintive 2009, isso ocorre usualmente quando o objeto não é suficientemente
pontiagudo). Lembre-se de que Ondas de Choque Normais são grandes dissipadoras de energia (causam arrasto), e por isso sua ocorrência deve ser evitada ou retardada ao máximo. É por essa razão que aviões e outros objetos voadores que pretendem se deslocar acima da velocidade do som, com mais eficiência, devem apresentar nariz e bordos de ataque dos aerofólios em forma pontiaguda.
Por outro lado, as Ondas de Choque Oblíquas são formadas de forma similar que as Normais, e costumam “acompanhar” a forma do objeto. Em voos supersônicos, ocorrem tanto no bordo de ataque quanto no bordo de fuga do aerofólio, e também representam fonte de dissipação de energia, porém, inferior às ondas normais.
Já as Ondas de Expansão resultam do efeito contrário ao da Onda de Choque. Elas surgem quando o fluxo de ar em alta velocidade é obrigado a expandir-se.
Passando por meio de uma onda de expansão, a densidade e a pressão do ar diminuem bruscamente e a velocidade aumenta.

As Ondas de Choque e de Expansão são aproveitadas para criar regiões de alta e baixa pressão, as quais geram sustentação em perfis supersônicos. A Onda de Expansão provoca uma redução de pressão no extradorso, enquanto a Onda de Choque provoca um aumento de pressão no intradorso do perfil supersônico.
A imagem a seguir mostra um perfil de asa empregado em fluxos supersônicos, em forma de cunha.

Como uma Onda de Pressão (oblíqua ou normal) sempre aumenta a pressão, observa-se que a pressão na porção dianteira de um aerofólio em voo supersônico é sempre superior à pressão atmosférica. Após passar pelo aerofólio, em sua parte traseira o fluxo de ar é novamente forçado a mudar de direção e de velocidade, por meio de Ondas de Expansão. Como comentamos, após cada Onda de Expansão a pressão é reduzida, e a diferença entre as pressões dianteira e traseira gera o chamado Arrasto de Onda que, diferente do caso dos fluxos subsônico e transônico, não depende da viscosidade do ar. Segundo explica Saintive 2009, após a passagem pelo bordo de fuga do perfil aerodinâmico, os filetes voltam à velocidade e pressão à frente do bordo de ataque do perfil, por meio de outra Onda de Choque.
No escoamento supersônico, a existência do Arrasto de Onda é uma função da espessura do aerofólio, e o arrasto produzido como efeito da sustentação é independente do alongamento da asa (para produzir uma mesma sustentação, o arrasto supersônico é bem superior ao arrasto observado nos regimes subsônico
e transônico). Assim, os perfis aerodinâmicos para voos supersônicos devem ser mais finos, terem pequeno alongamento e grande afilamento para redução de peso (SAINTIVE, 2009).
Outra questão que deve ser levada em consideração em escoamentos supersônicos é o aquecimento aerodinâmico. Quando o ar flui sobre qualquer superfície aerodinâmica, ocorrem certas reduções de velocidade, as quais produzem os correspondentes aumentos de temperatura.
A maior redução de velocidade e aumento de temperatura ocorrem nos diversos pontos de repouso da camada limite na aeronave. Enquanto os voos subsônicos não demandam preocupações nesse sentido, os supersônicos podem gerar temperaturas suficientemente elevadas, a ponto de tornarem-se de grande importância para a estrutura, sistema de combustível e grupo motopropulsor. Temperaturas mais elevadas produzem reduções específicas na resistência das ligas de alumínio, e requerem a utilização de ligas de titânio e aços inoxidáveis. O efeito do aquecimento aerodinâmico sobre o sistema de combustível, deve ser considerado no projeto de um avião supersônico. Se a temperatura do combustível for elevada para a temperatura de ignição espontânea, os vapores de combustível podem queimar na presença de ar, sem a necessidade de uma centelha inicial ou chama.
Igualmente, o desempenho de motor turbojato é adversamente afetado pela alta temperatura do ar na entrada do compressor. O empuxo de saída do turbojato é uma função do fluxo de combustível, porém, o fluxo máximo permissível de combustível depende da temperatura máxima permissível para operação da turbina. Ou seja, se o ar que entra no motor já estiver aquecido, menos combustível pode ser adicionado, de forma a evitar que os limites de temperatura da turbina sejam excedidos.
Enquanto as aeronaves aceleram muito lentamente por meio do regime transônico, assim que o voo supersônico é alcançado, a aceleração aumenta. Isso deu origem ao conceito de sobrevoo supersônico “supercruzeiro”, em um regime de baixa onda de arrasto, tipicamente sem o uso de pós-combustores, pois esses consomem muito combustível e normalmente não podem ser usados de forma prolongada.
Nesses casos é interessante pontuarmos que: primeiramente, os motores a jato precisam de uma corrente de ar subsônica na sua admissão. Para uma aeronave que voa a Mach 2, não é fácil obter uma corrente de ar subsônica nos motores e, portanto, quando projetados para uso supersônico não costumam ter bom desempenho nas velocidades subsônicas e vice-versa; segundo, o escoamento da aeronave gera muito calor, então a fuselagem precisa ser resistente ao calor; e terceiro, sobrevoar em “supercruzeiro” geralmente significa um voo em elevadas altitudes (pois a densidade do ar e, portanto, a resistência geral é muito reduzida), o que gera a necessidade de um sistema eficiente de suporte à vida. Como exemplo, o Concorde cruzava os céus à velocidade de Mach 2,2 a 52.000 pés. Já a aeronave militar SR-71 operava em cruzeiro ainda mais alto, com velocidade de Mach 3,2 a 80.000 pés!
Bem, como afirmamos no início desta Seção, o objetivo do estudo do escoamento supersônico era tão somente o de lhe fornecer condições de diferenciá-lo do escoamento transônico. Você já deve ter percebido que produzir e, principalmente, operar uma aeronave supersônica, não é tarefa simples e econômica. Nesse sentido, Saintive 2009 destaca que, devido a todas as diferenças existentes entre os comportamentos dos escoamentos supersônico e transônico, há diversos compromissos que devem ser solucionados para a operação de uma aeronave supersônica, e isso não é tarefa fácil.
Ao realizar uma análise sobre as características do único avião supersônico já produzido para uso comercial – o Concorde, o autor relembra que tais tipos de aeronave possuem características que as possibilitam voar em regime supersônico, mas que essas mesmas características as tornam muito pouco eficientes para a operação em regimes transônicos e, principalmente, subsônicos. Ou seja, sempre haverá um compromisso de engenharia e de eficiência a ser equacionado, uma vez que essas aeronaves decolam e pousam em regime subsônico, e devem operar nas mesmas pistas que as aeronaves comerciais comuns.