Regime de voo e ondas de choque

Já comentamos que, quando o ar em fluxo supersônico é comprimido, sua pressão e densidade aumentam, formando uma “onda de choque”. Em voo supersônico (com velocidades acima de Mach 1), o avião produz inúmeras ondas de choque, sendo mais intensas as que se originam no nariz do avião, nas partes dianteira (bordo de ataque) e posterior (bordo de fuga) das asas, e na parte terminal da fuselagem.

Nessa condição, uma vez que o ar à frente da aeronave não foi influenciado pelos impulsos de pressão gerados pela própria aeronave, esse terá que se adaptar instantaneamente ao impacto com ela, experimentando variações de velocidade, temperatura, pressão e densidade, para que possa escoar de forma tangente
ao perfil do objeto em movimento. Tais variações de densidade geram ondas de choque à frente da aeronave, denominadas “ondas de proa”.

As ondas de choque geradas por um avião em voo supersônico atingirão o solo depois da passagem do avião que as está produzindo. Um observador no solo ouvirá um forte estampido, assim que as ondas de choque o alcançarem.

Esse estampido é conhecido como “estrondo sônico”, e sua intensidade depende de vários fatores, tais como as dimensões do avião, a forma do avião, a velocidade do voo e a altitude. Tal fenômeno pode, em certas circunstâncias, ser forte o suficiente para produzir efeitos no solo, como danificar vidros e provocar rachaduras em determinados materiais. Assim, essas possibilidades limitam a operação de voos em velocidades supersônicas sobre os continentes.

Em aerodinâmica, a “barreira do som” é a aparente barreira física que dificulta grandes objetos de atingirem velocidades supersônicas. A expressão foi criada durante a II Guerra Mundial, quando diversos aviões começaram a se deparar com os efeitos da compressibilidade do ar (e outros efeitos aerodinâmicos não relacionados à
compressibilidade), e começou a sair de uso nos anos 1950, quando os aviões passaram a “quebrar” a barreira do som rotineiramente.

Você deve se lembrar do Concorde – um avião comercial que operava em velocidades supersônicas (Mach 2.02) sobre o mar. O avião acelerava e atingia velocidades supersônicas somente após deixar o continente e alcançar altitudes elevadas, minimizando os efeitos do estrondo sônico.

Bom, já sabemos que quando um avião se aproxima da velocidade do som, o ar passa a fluir de uma maneira diferente ao redor de suas superfícies e se comporta
como um fluido compressível. Além de uma série de mudanças na forma como a força de sustentação é gerada, essa mudança também produz um incremento
elevado no arrasto, conhecido como onda de arrasto.

Inicialmente, a onda de arrasto não era devidamente compreendida. Acreditava-se que ela crescesse exponencialmente, o que efetivamente ocorre dentro de uma
pequena faixa de velocidades. Com a força limitada que os tradicionais motores à explosão eram capazes de gerar (e ainda o são), os aviões não podiam superar este
rápido aumento no arrasto. Ou seja, grandes incrementos de potência produziam pequenos incrementos de velocidade. Acreditava-se, então, que seria necessária
uma quantidade infinita de força para se alcançar velocidades supersônicas, sendo este um dos prováveis motivos para o termo “barreira do som”.

Com a criação das asas com formato em “V” (também denominadas “asas enflechadas”), que reduzem o arrasto, junto à adoção dos motores a jato capazes
de produzir a potência necessária, nos anos 1950 diversas aeronaves já eram capazes de realizar voos supersônicos com relativa facilidade. Mais adiante,
veremos em detalhes a questão das asas com enflechamento e outras soluções propostas pelos engenheiros aeronáuticos, para reduzir os efeitos negativos da
compressibilidade do ar e das consequentes ondas de choque provocadas a partir dos voos transônicos.

Você sabia que Chuck Yeager (major da Força Aérea dos Estados Unidos), é reconhecido como a primeira pessoa a quebrar a barreira do som? Isso ocorreu em um voo horizontal, em 14 de outubro de 1947, pilotando um Bell X-1 experimental, ocasião em que alcançou Mach 1 a uma altitude de 15.000 m (cerca de 45.000 pés).

Mas, afinal de contas, em relação à velocidade de deslocamento de uma aeronave, como podem ser classificados esses voos? Em geral, os regimes de voo são definidos em quatro categorias básicas, segundo a velocidade empregada por uma aeronave, em comparação à velocidade do som. Esses são: os voos subsônicos, os voos transônicos, os supersônicos e os hipersônicos. Não abordaremos em maior profundidade os conceitos aerodinâmicos dos voos supersônicos e hipersônicos, haja vista que tais deslocamentos usualmente restringem-se às aeronaves militares ou aplicam-se à aerodinâmica dos voos de foguetes.

Cargueiros e aeronaves de passageiros modernas cruzam os céus em regimes de voo subsônicos ou normalmente transônicos, motivo pelo qual daremos especial
atenção a esse último regime.

Já sabemos que, mesmo voando em velocidades abaixo das do som, uma aeronave poderá registrar fluxos de ar acima da velocidade do som, em alguma região de sua asa. Vimos que a velocidade de deslocamento da aeronave, nessa condição, é denominada de Mach Crítico (no momento em que é registrado o primeiro escoamento supersônico na aeronave e, consequentemente, o surgimento da primeira onda de choque).

Assim, até o limite de Mach Crítico (e cada aeronave possui o seu), convencionou-se chamar o voo de “Subsônico”, pois ao longo de toda a estrutura da aeronave o
fluxo de ar desloca-se abaixo da velocidade do som. Esse regime é geralmente caracterizado por velocidades de deslocamento inferiores a Mach 0,75. Imagem A abaixo.

À medida que a aeronave acelera e ultrapassa o Mach Crítico, passam a coexistir fluxos de ar abaixo da velocidade do som e, em algumas regiões da aeronave, fluxos acima da velocidade do som, o que caracteriza o regime de voo “Transônico”. Imagem B acima.

Então, perceba que o Mach Crítico é considerado como a fronteira entre o voo subsônico e o voo transônico, e os problemas advindos da compressibilidade do
ar sobre a aeronave só ocorrem acima desse limite de velocidade. Esse regime é geralmente caracterizado por velocidades de deslocamento superiores a Mach
0,75 e inferiores a Mach 1,2.

No regime transônico, a passagem do fluxo subsônico para o supersônico é suave, porém, a transição do fluxo supersônico para o subsônico é sempre acompanhada por
uma onda de choque.

Se a aeronave continuar a acelerar, chegará um momento em que não haverá mais nenhuma região da mesma sujeita a escoamentos de ar subsônicos, mas somente fluxos acima da velocidade do som. Isso caracteriza o ingresso no regime de voo denominado “Supersônico” e, em seguida, o “Hipersônico”. Tais regimes são usualmente definidos por velocidades de deslocamento superiores a Mach 1,2 e inferiores a Mach 5 (Supersônico), e superiores a Mach 5 (Hipersônico).

Na verdade, mesmo voando em regime supersônico/hipersônico, uma região do fluxo de ar sobre a aeronave ainda permanece com velocidades abaixo das do som,
devido à viscosidade do ar. Essa região é a camada limite (região onde ocorre a desaceleração dos filetes de ar na superfície de um aerofólio), conceito abordado
anteriormente de forma breve.

Os limites de velocidade descritos acima, e que caracterizam cada regime de voo, são aproximados e dependerão das características físicas de cada aeronave e de seus aerofólios. Assim, poderemos ter uma determinada aeronave atingindo Mach Crítico voando a M 0.73 e, uma outra aeronave distinta, a M 0.77.

Nesse caso, voando a M 0.74, a primeira aeronave já terá ingressado em regime transônico, enquanto a segunda ainda estará se deslocando em regime subsônico (consequentemente, sem a presença de ondas de choque e de seus efeitos indesejáveis).

Antes de detalhar um pouco mais os voos transônicos, vejamos alguns conceitos sobre os limites superiores de velocidade das aeronaves modernas. As típicas aeronaves movidas por motores a pistão usualmente lidam com dois tipos de limites de velocidade máxima, a saber:

  • VNO: é a velocidade máxima para o regime de cruzeiro, representada no velocímetro da aeronave pelo limite superior do “arco verde”. É possível exceder essa velocidade, em determinadas condições e situações específicas;
  • VNE: é dita a velocidade a não ser excedida, representada pelo “arco vermelho” no velocímetro da aeronave.

Bem, de uma maneira geral, tais limites não representam uma grande preocupação para os pilotos desse tipo de avião, em termos de regime de voo de cruzeiro ou mesmo de descida, pois as aeronaves movidas a motores a pistão geralmente apresentam grande arrasto, e seus limitados propulsores as impedem de acelerar rapidamente e de alcançar regimes de velocidade muito grandes, que se enquadrem nos conceitos dos limites definidos acima.

Entretanto, nas modernas aeronaves a jato, ou mesmo em alguns tipos de aeronaves impulsionadas por propulsores turboélice, tais velocidades podem facilmente ser ultrapassadas – tanto pelas características de baixo arrasto dessas aeronaves, quanto pela capacidade de seus propulsores em acelerá-las rapidamente. Somado a isso, lembre-se de que tais aviões operam em grandes altitudes, onde a barreira da velocidade do som impõe restrições aerodinâmicas diversas, como já comentado anteriormente em relação à compressibilidade do ar.

Para tais tipos de aeronave surgem dois conceitos distintos de velocidade – um representado em nós, para velocidades indicadas no velocímetro, e outro representado em Número Mach (igualmente apresentada no velocímetro).

Assim, observamos dois conceitos distintos de limite superior de velocidade de operação, para aeronaves de alta performance:

  • VMO: é a velocidade máxima de operação da aeronave, em termos de velocidade indicada;
  • MMO: é a velocidade máxima de operação da aeronave, usualmente medida em décimos da velocidade do som (décimos de número Mach).

À medida que a aeronave ganha altitude e acelera, a velocidade indicada cai (por conta da redução da densidade do ar), mas também observamos uma redução na velocidade do som (devido à queda na temperatura do ar). Assim, prosseguindo em subida na atmosfera, existe um momento em que a aeronave dificilmente terá condições de extrapolar o seu limite de velocidade VMO, mas por conta da redução da velocidade do som, poderá sim avançar e ultrapassar facilmente o seu limite de velocidade MMO, e alterar significativamente a sua controlabilidade.

Como já comentado, em tais tipos de aeronave os projetistas concentram-se em aumentar ao máximo a velocidade de Mach Crítico – para retardar o aparecimento dos efeitos negativos das ondas de choque, que começam a surgir após esse limite. Via de regra, essas mesmas aeronaves são projetadas para operar com segurança em velocidades acima do Mach Crítico, o que nos permite afirmar que a sua MMO > MCritico.

Na figura acima, uma aeronave desloca-se na velocidade de M 0.89. Os filetes de ar que atingem o bordo de ataque da asa, e correm pelo seu extradorso acima da camada limite, aceleram até atingir a velocidade do som. Após, observa-se uma redução na velocidade dos filetes, à medida que o perfil da asa se torna mais fino e menos inclinado em relação ao eixo de deslocamento da aeronave. Ao final do escoamento, ao livrar o bordo de fuga da asa, os filetes de ar devem possuir a mesma velocidade original, ou seja, a velocidade da aeronave.

Lembre-se de que todas as ondas de pressão geradas nesse aerofólio se deslocam para todos os lados, com a velocidade do som. Assim, perceba que a partir do bordo de fuga da asa, as ondas de pressão geradas naquele local também avançam sobre o extradorso da asa, em direção ao bordo de ataque. Entretanto, como as ondas de pressão geradas logo à frente do bordo de fuga também viajam na velocidade do som, mas a velocidade dos filetes naquele local é maior do que no bordo de fuga, algumas ondas de pressão se encontram e“viajam” em direção ao bordo de ataque numa velocidade relativa de M 1.0 – M 0.90 ( e posteriormente M 1.0 – M 0.95), até que todas as ondas oriundas da região traseira da asa (com escoamento subsônico), encontram-se na região onde o escoamento é supersônico, e por lá permanecem estagnadas (pois naquele local estarão viajando à velocidade do som, mas em uma região que igualmente está na mesma velocidade – ou seja, a velocidade das ondas de pressão, que sobem em direção ao bordo de ataque da asa, é igual à velocidade daquelas que descem em direção ao bordo de fuga).

Uma analogia similar que podemos fazer é a de uma pessoa que tenta subir uma escada rolante que desce. Apesar de se movimentar, a pessoa não se desloca, pois
caminha na mesma velocidade que a escada, porém, em sentido contrário.

Assim, todas as ondas de pressão (impulsos de pressão) geradas na região subsônica da asa, bem como aquelas geradas na região de deslocamento supersônico, encontram-se em um determinado ponto e se acumulam. Por conta da compressibilidade do ar, esse fenômeno gera uma onda de choque normal (perpendicular ao deslocamento do ar), ocasionando a elevação da densidade do ar, de sua pressão e temperatura.

Se a aeronave continuar a acelerar e ultrapassar Mach 1, as partículas de ar devem se ajustar instantaneamente à forma da asa e da fuselagem e, como já comentado, produzindo uma nova onda de choque à frente do avião, denominada “Onda de Proa”.

Tais ondas são observadas nos regimes de escoamento transônico (relembrando – regime no qual coexistem filetes de ar voando abaixo e acima da velocidade do som, no objeto em deslocamento), e se diferem daquelas geradas nos regimes supersônicos (ou hipersônicos).

Primeiramente, é importante observar que tais ondas de choque ocorrem somente na passagem do escoamento supersônico para o escoamento subsônico, ou seja, no momento em que o fluxo de ar que atingiu velocidades supersônicas inicia a sua desaceleração, para que possa ao fim do seu percurso apresentar a mesma velocidade do objeto que está em movimento.

Normalmente, o primeiro local de um aerofólio a registrar o aparecimento de uma Onda de Choque Normal, quando é ultrapassado o Mach Crítico (ou seja, em um escoamento transônico) é a porção mais espessa do aerofólio, onde ocorre a maior distância para a Corda Média Aerodinâmica (local onde o ar é mais acelerado). Abordaremos mais adiante os diferentes tipos de perfis de aerofólios, usualmente empregados em aeronaves que voam em regime transônico, que tendem a “atrasar” a formação de Ondas de Choque.

Outras características de uma Onda de Choque Normal são:

  • Em seu interior ocorre compressão do ar, tornando-o mais denso, com pressão e temperatura mais elevada. Na região da onda de choque, a velocidade do fluxo de ar, em termos reais e comparativamente ao número Mach, é reduzida (com o aumento da temperatura, a velocidade do som aumenta). Ainda, as pressões elevadas que surgem no interior da onda dificultam o avanço da Camada Limite, por sobre a superfície;
  • A velocidade dos filetes de ar, logo após a onda de choque normal, é aproximadamente o inverso da velocidade dos filetes localizados anteriormente à onda. Assim, se na região supersônica que antecede à onda de choque o ar se deslocava a M 1.2, esse será desacelerado para em torno de M 0.83 após a onda de choque;
  • A direção dos filetes de ar não se modifica, à medida em que passa pela Onda de Choque Normal;
  • Ocorre uma significativa perda de energia dos filetes de ar, originada pela redução do somatório das pressões estática e dinâmica.

Como apontado acima, a Onda de Choque Normal dificulta o avanço da Camada Limite sobre a superfície do aerofólio, e da camada de ar que deveria estar se deslocando de forma laminar acima da Camada Limite. Dependendo da intensidade da onda de choque, o ar que se encontra na região da Camada Limite poderá ter
a velocidade sobre o seu extradorso do aerofólio tão reduzida, que as partículas que se deslocam atrás desse local, em direção ao bordo de fuga, serão forçadas a
se separarem da superfície, desestabilizando e causando desordem no fluxo de ar. Lembre-se de que a Camada Limite pode apresentar um fluxo laminar ou turbulento.

As ondas de choque perturbam o fluxo laminar, tornando-o turbulento, prejudicando em muito a geração de sustentação, o que pode levar ao “estol” da região. Esse estol, acentuada perda de sustentação, é geralmente associado nas aeronaves de baixa performance a circunstâncias de voos em regimes de velocidade baixa, próximos ao mínimo da aeronave para um determinado peso e ângulo de ataque. Diferentemente, o estol a que nos referimos agora, fruto do turbilhonamento do ar causado por uma Onda de Choque Normal, é denominado “estol de alta velocidade”, também conhecido como “estol de compressibilidade”, “estol de choque ou estol de Mach”.

Surge, então, o conceito de “Separação ou Descolamento da Camada Limite”, que produz grande aumento no arrasto e significativa redução na capacidade de um aerofólio de gerar sustentação. Logicamente, essa é uma das grandes preocupações dos projetistas de aeronaves.

Na verdade, o “estol de alta velocidade” pode também estar associado a outros fatores, como súbita aplicação de elevada Carga “G” sobre a aeronave, ou operação (em baixa ou alta velocidade) com elevados AOA (ângulo de ataque do aerofólio). Independente da causa, o efeito será similar, e poderá ser identificado por um piloto pela ocorrência de “buffet”, proveniente da perda parcial de sustentação gerada pelo aerofólio.

Buffet é o termo na língua inglesa, designado para caracterizar as vibrações causadas por efeitos aerodinâmicos, normalmente associados com o descolamento ou turbulência do escoamento de ar em um aerofólio. À medida em que se aproxima de uma situação de estol, os filetes de ar sobre as asas tornam-se cada vez mais turbulentos, afetando a sustentação e até mesmo o deslocamento de ar sobre outras estruturas da aeronave, como o estabilizador horizontal, o que gera esse tipo de vibração.

Nesta seção, compreendemos os principais conceitos que caracterizam o regime de voo transônico, e abordamos alguns aspectos sobre os efeitos da compressibilidade do ar sobre um aerofólio, culminando com o aparecimento de Ondas de Choque Normais. No início do Capítulo, comentamos sobre alguns fenômenos que eram observados, e que afetavam as aeronaves que alcançavam altitudes e velocidades cada vez maiores, na primeira metade do século passado. Agora, já sabemos que as modernas aeronaves operam em regimes de velocidade que causam as chamadas Ondas de Choque Normais, e você já pode desconfiar que muitos dos fenômenos perigosos, enfrentados na aviação num passado recente, estejam associados ao aparecimento de tais ondas. A seguir, trataremos dos efeitos das Ondas de Choque Normais sobre a aerodinâmica de uma aeronave e, em seguida, abordaremos quais as ferramentas e artifícios utilizados pelos projetistas de aviões, para minimizar as consequências da compressibilidade do ar sobre eles.

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